No momento em que o Parlamento acolhe os Dias da Memória, a responsável máxima pela Europeana, Jill Cousins, explica o que é esta gigantesca biblioteca digital, que quer tornar acessível e utilizável toda a herança cultural europeia. Até ao momento, já colocou online digitalizações autenticadas de mais de 32 milhões de peças.
O projecto Europeana 1914-1918, com o qual o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa colabora, designadamente organizando os Dias da Memória que na sexta-feira se iniciam no Parlamento, é apenas uma das muitas iniciativas da Europeana, uma gigantesca biblioteca digital europeia lançada há cinco anos para concentrar e disponibilizar, em formato digital, toda a herança cultural partilhada ao longo dos séculos pelos países e povos da Europa, das mais famosas pinturas do Louvre a um livro de canções escrito por um soldado francês nas trincheiras da I Guerra e conservado pela sua família. Só de Portugal, a Europeana já recebeu digitalizações de quase 250 mil objectos. E espera que campanhas como esta, em torno da I Guerra, ajudem a dar visibilidade ao projecto e contribuam para aumentar as contribuições dos museus, bibliotecas, arquivos e outras instituições portuguesas.
Em poucas palavras, o que é a Europeana e quais são os principais objectivos do programa?
A Europeana quer transformar o mundo através da cultura. Criámos uma plataforma digital para a nossa herança cultural europeia, que reúne o património dos grandes museus, das colecções audiovisuais, dos arquivos e bibliotecas, e que educadores, investigadores ou programadores, mas também o público em geral, podem usar e partilhar gratuitamente. Através da Europeana, e graças ao trabalho de três mil instituições culturais, temos agora mais de 32 milhões de objectos disponíveis num só lugar, onde as pessoas os podem pesquisar, ou reutilizá-los noutros sites e aplicações.
Pode categorizar, com alguns exemplos concretos, os diferentes tipos de objectos que estão a ser digitalizados?
Temos digitalizações autenticadas de pinturas, fotografias, livros e vídeos, enviadas por três mil bibliotecas, museus, galerias e arquivos. De Portugal, por exemplo, dispomos neste momento de 234.859 itens, que incluem uma representação significativa das colecções de algumas das mais importantes instituições portuguesas de salvaguarda da herança cultural. Do Museu Nacional dos Coches incluímos recentemente 48 imagens dos belíssimos coches ali conservados. Temos também, por exemplo, 68 objectos do Museu Nacional do Azulejo – gosto particularmente dos painéis de azulejos com vistas de Lisboa antes do terramoto –, que foram entretanto integradas nosite museums.eu, o que constitui um excelente exemplo do modo como o conteúdo da Europeana pode ser reutilizado.
Mas os conteúdos vindos de Portugal não se limitam ao domínio museológico. Recebemos 172 peças do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, sobretudo digitalizações de objectos, fotografias e documentos relacionados com a presença portuguesa na I Guerra, um conjunto que tenderá a expandir-se porque o IHC é nosso parceiro nos Dias da Memória organizados no âmbito do Europeana 1914-1918. Das colecções digitais da Biblioteca Nacional temos mais de 12 mil textos e imagens, incluindo manuscritos, livros raros e mapas. E, no domínio dos arquivos audiovisuais, temos 453 peças da Cinemateca.
Há uma estimativa do número de peças que deveriam ser digitalizadas e reunidas para o programa cumprir plenamente a sua missão? E caso esse objectivo ideal tenha sido calculado, quão longe está a Europeana de o atingir?
Nos cinco anos desde que o programa foi lançado, já disponibilizámos no site Europeana.eu digitalizações de mais de 32 milhões de peças da nossa herança cultural, o que é um feito considerável, mas que representa apenas 12% de todo o material já digitalizado nos diversos países europeus, que, por sua vez, corresponde a apenas 10% de tudo o que seria pertinente digitalizar.
Temos um longo caminho a percorrer. Os obstáculos prendem-se sobretudo com questões de direitos de autor, mas há outros, como a necessidade de garantir a interoperacionalidade e a uniformização das colecções digitais. Esta é de facto a razão subjacente para a importância da Europeana: conseguir que o material digital atravesse as fronteiras, para que possamos dispor da nossa herança europeia do mesmo modo que usufruímos do nosso património nacional.
Esforçamo-nos para dar às pessoas conteúdo de alta qualidade, com informações claras relativas a direitos, de modo que saibam como podem dispor dele ou reutilizá-lo de forma criativa e inovadora.
Quais são as principais vantagens de ter todo esse património cultural europeu virtualmente reunido num só lugar?
Vermos a herança cultural que partilhamos e, mais importante ainda, pô-la a funcionar como um todo, de modo a que um investigador possa chegar rapidamente a tudo o que se relacione com Vasco da Gama – mapas, documentos, retratos –, ou com Amália Rodrigues, ou com as pinturas de Nuno Gonçalves, que estão dispersas por toda a Europa, em diferentes instituições e colecções, sabendo que está a lidar com documentos autenticados.
Diria que a prioridade é garantir que a Europeana reúna o máximo de informação possível, ou o programa deveria focar-se mais em organizar e disponibilizar o material que já tem?
Ambas as coisas são necessárias. Mas é preciso perceber que aquilo que há cinco anos era utilizável, já não o é para os tablets e outros equipamentos actuais, de modo que uma função central da Europeana é criar nas instituições dos diferentes países a consciência de que é necessário garantir a qualidade das digitalizações.
Colocar na Internet uma enorme quantidade de dados e, ao mesmo tempo, garantir que um investigador encontra facilmente o que procura, seja a reprodução de um retábulo medieval ou a imagem de um cantil usado por um soldado português nas trincheiras da I Guerra, deve levantar desafios técnicos complexos.
Tem razão em achar que o processo é complexo. Desenvolvemos internamente modos de melhorar os padrões de meta-dados para que a procura se torne mais fácil e criamos novos sistemas em nuvem para organizar e divulgar o material digital. Este nível de complexidade, e a impossibilidade de apresentar conteúdos de modo a que satisfaçam simultaneamente uma criança de escola e um investigador, é uma das razões principais para a Europeana estar a migrar de um portal para uma plataforma. Um lugar onde outros possam construir.
Para mantermos o nosso sucesso, temos de reconsiderar o objectivo inicial de criar um museu, biblioteca e arquivo da Europa com um só acesso. Continuamos a achar que é uma boa ideia, mas a tecnologia permite-nos fazer muito mais e teremos de nos esforçar por satisfazer as expectativas dos utilizadores.
As pessoas querem reutilizar este material, brincar com ele, interagir com outros utilizadores e participar na criação de algo novo. Para o permitir, teremos de começar a comportar-nos como uma plataforma: um lugar não apenas para se visitar, mas onde se pode brincar e construir. Dar a conhecer o que pode encontrar-se na Europeana continua também a ser importante e estamos a experimentar um novo modo de apresentação através de canais. O Europeana 1914-1918 é um bom exemplo de um desses canais.
Todo o material disponível na Europeana é de uso livre? Se um investigador quiser, por exemplo, usar algumas imagens num livro ou num artigo online, pode fazê-lo citando apenas a origem, ou há restrições?
A generalidade do material sobre a I Guerra está sujeito a algum tipo de licença Creative Common e pode, com atribuição de autoria, ser facilmente usado por investigadores e jornalistas. E trabalhamos para garantir que a maioria do material que agregamos inclua uma correcta informação sobre os respectivos direitos de utilização. Além do botão “posso usar?”, o utilizador dispõe da possibilidade de excluir imagens de uso restrito ou pedir uma autorização expressa à instituição que as enviou.
Acreditamos que há muito a ganhar, nos planos económico e social, em abrir a nossa herança cultural. Mas também defendemos que o criador deve ser recompensado, de modo que somos muito cuidadosos no respeito pelos direitos de autor.
A crise económica e financeira está a ter algum impacto negativo no programa? Penso não só nos fundos europeus disponíveis, mas também nos níveis de contribuição das instituições sediadas em países mais afectados pela crise, como Portugal.
É inevitável que um projecto com esta dimensão acuse o impacto desses factores externos, mas o forte empenho das instituições culturais tem-nos permitido aumentar as nossas colecções. Em 2011 tínhamos 19,5 milhões de itens, hoje temos mais de 32 milhões. Digitalizar também tem a vantagem de criar emprego e de dotar as pessoas de novas competências.
Vários países usaram os fundos estruturais para digitalizar o seu património cultural, em detrimento da construção ou renovação de estradas e outras infra-estruturas físicas. Em Portugal, como noutros países, os museus podem enfrentar desafios financeiros, mas reconhecem as vantagens de que os seus tesouros sejam vistos e usados por mais pessoas. Nestes últimos anos, os conteúdos enviados pelos nossos parceiros portugueses quase dobraram.
Um dos programas lançados pela Europeana é dedicado a lembrar a I Guerra no ano do seu centenário: o Europeana 1914-1918. Até ao momento, os resultados deste projecto estão a corresponder às expectativas?
Sim! O que o Europeana 1914-1918 tem de melhor é que liga o indivíduo ao seu lugar na Europa e a sua história pessoal à do Estado. O programa cruza meio milhão de documentos raros, únicos, inéditos, digitalizados por instituições de mais de 20 países, com a memorabilia pessoal e as histórias familiares. Começámos a reunir histórias pessoais na Alemanha, há três anos, e no final de 2014 teremos estado em 22 países. Até agora, coligimos 150 mil histórias. Graças à Biblioteca Nacional portuguesa, nosso parceiro de longa data, e ao enorme empenho da professora Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea, que organiza os Dias da Memória no Parlamento português, esperamos agora grandes coisas de Portugal.
No âmbito do Europeana 1914-1918, parece ter havido um grande investimento nestes Collection Day (Dias da Memória, em Portugal). São uma componente importante do projecto?
São iniciativas que realmente ligam as nossas histórias pessoais às narrativas oficiais do período. E como estes relatos vêm de pessoas que correram mundo, não se movem apenas no interior das versões nacionais da verdade. Para citar um desses testemunhos, deixado pelo soldado Léon Verneau e recolhido num Collection Day organizado em França: “Vi povos estrangeiros, países e continentes, e tudo isto graças à guerra”. Apesar de ter sido gravemente ferido em Verdun, escreveu um livro de canções, que ilustrou com desenhos.
Através dos Collection Day, familiares e amigos que herdaram essas recordações têm a oportunidade de partilhar peças históricas que doutro modo estariam nalgum sótão a ganhar pó. Através da digitalização, podem preservar para as futuras gerações esses registos de um período decisivo da história europeia.
Está satisfeita com o material relativo à I Guerra já recolhido e digitalizado em Portugal? E parece-lhe que a informação respeitante à frente africana, nas então colónias de Moçambique e Angola, poderá ser especialmente interessante, iluminando uma dimensão menos estudada do envolvimento português no conflito?
Precisamos de muito mais material e esperamos que esta campanha ajude. Estamos também a tentar usar alguns programas europeus para financiar as digitalizações. Gostaria de promover Collection Days em Angola, Moçambique e noutros países do mundo que foram envolvidos na guerra, e teria muito prazer em falar com qualquer instituição que esteja disposta a ajudar. O Europeana 1914-1918 deve representar todos os lados e perspectivas do conflito: anti-guerra, pró-guerra, países neutrais e nações beligerantes, as frentes internas e os campos de batalha.
Pensa que as bibliotecas e arquivos tradicionais, ainda que fundamentais para a conservação da nossa herança cultural, tenderão a perder relevância enquanto lugares de investigação? E que projectos como a Europeana servirão mais eficazmente as necessidades das futuras gerações de investigadores?
O que creio é que este projecto mostra a importância de se expor as colecções das bibliotecas e arquivos, religando essas instituições aos cidadãos. Penso que devem digitalizar e mostrar o mais possível as suas colecções, para que os utilizadores actuais e futuros saibam que elas existem e incorporem esse conhecimento que foi sendo construído e autenticado ao longo dos séculos. Sabemos hoje que digitalizar e tornar essas digitalizações disponíveis dá às instituições uma nova vida e novos públicos. E precisamos das competências organizativas e de investigação dessas instituições no mundo online, tal como precisamos delas offline.
O facto de vários países que colaboram com o Europeana 1914-1918 terem estado em lados opostos durante a guerra levantou problemas? Acha que cem anos são uma distância segura e que as coisas poderiam ser diferentes se lançassem, digamos, um Europeana 1939-1945?
É uma questão interessante. Deliberadamente, começámos os Collection Day na Alemanha, em 2010, para medir a temperatura, e a resposta foi tão extraordinária que soubemos que tínhamos de continuar. Como depois foi espantosa a resposta da Irlanda, que enviou os seus soldados para a guerra enquanto heróis britânicos e depois não acolheu bem o seu regresso à República irlandesa pós-levantamento de 1916. Tivemos 700 pessoas num só Collection Day, e oito mil visitaram em Setembro o Trinity College, em Dublin, onde se promoveu outra iniciativa semelhante. As pessoas querem contar as suas histórias. Quanto à II Guerra, tenho pensado em como a abordar… é uma questão sensível e que talvez precise da passagem do tempo.
Notícia corrigida às 14h50: o Instituto de História Contemporânea pertence à Universidade Nova de Lisboa e não à Universidade de Lisboa