12 de março de 2014 | 2h 10
JOSÉ RENATO NALINI - O Estado de S.Paulo
A guarda de tal acervo implica dispêndio de vultosa quantia, dinheiro do povo. Numa equação singela de custo-benefício, a urgência de modernização estrutural e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional clamaria por prioridade em cotejo com a obrigatoriedade de conservação de ações que já surtiram seus efeitos na Justiça.
O Tribunal de Justiça (TJSP) destina atualmente mais de R$ 3,276 milhões mensais para a guarda desses processos. Ou seja, quase R$ 40 milhões anuais empregados na conservação de arquivo morto. Só que a necessidade de cadastramento dos 83 milhões demandaria mais de R$ 9 milhões por mês ou quase R$ 110 milhões por ano!
O Poder Judiciário de São Paulo não dispõe de dinheiro para satisfazer essa demanda. Primeiro porque, a despeito da explicitude do artigo 99 da Constituição da República, repetido no artigo 55 da Constituição do Estado, carece de autonomia financeira. A peça orçamentária é ordinariamente mutilada pelos órgãos de planejamento e não se vislumbra perspectiva de alteração desse quadro. Depois porque, se dispusesse de numerário, investiria prioritariamente na informatização, processo irreversível e que no futuro o liberará do uso do suporte papel. Entre atender à demanda crescente e manter arquivo de demanda encerrada, qual a opção do gestor consciente?
O TJSP não declina de sua responsabilidade na gestão documental. Mas é de fácil reconhecimento a circunstância de não serem suscetíveis de arquivo perpétuo, por sua historicidade, todos os processos arquivados. A imensa maioria poderia ser descartada sem prejuízo para quem quer que seja.
O surrado argumento de que o conselheiro Rui Barbosa destruiu a documentação relativa à escravidão é aqui de evidente demasia. Qual o interesse em manter perpetuamente arquivados os inquéritos policiais que não geraram processo-crime, ações contra concessionárias de serviço público ou bancos, ações de despejo, ações ordinárias de cobrança e tantas outras lides terminadas?
Depois de um esforço hercúleo de servidores públicos auxiliados por estagiários dos cursos de bacharelado em História e Direito, o TJSP conseguiu examinar um conjunto de 10 mil processos ao longo de dez meses. Daí resultou que 4.272 processos poderiam ser descartados e 5.728 precisariam ser temporariamente conservados. Se esse ritmo viesse a merecer continuidade, o cadastramento dos 83 milhões de processos chegaria a 227 anos, segundo o mais otimista dos cálculos.
É óbvio que São Paulo precisa de alternativa para cuidar desse tema, que aflige os responsáveis pelos destinos da Justiça. A Recomendação 37/2011 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dificilmente poderá ser observada de maneira rígida e inflexível, salvo se o CNJ reservar também a quantia necessária para seu cumprimento. A alternativa mais consentânea seria a conclamação de todos os interessados - universidades, institutos históricos, arquivos públicos, ONGs, escritórios de advocacia e mesmo as partes - a retirarem os processos findos de seu interesse em custódia. Após ampla divulgação, em editais reiteradamente publicados, a entrega se daria mediante um termo de depósito para fins de identificação da responsabilidade pela guarda. Os processos sobre os quais ausente qualquer busca poderiam ser reciclados.
Os números impressionantes da Justiça paulista precisam merecer tratamento singular desse órgão do Poder Judiciário, que tem a missão de planejar o futuro do equipamento estatal encarregado de solucionar os conflitos humanos.
É certo que a maioria desse acervo não interessa à História nem a ninguém. Parcela considerável dos intervenientes em tais demandas já deixou esta existência e não deixou sucessores. Demandas menores, questões singelas, só por amostragem poderiam merecer arquivamento.
Um país carente de moradias, escolas, creches, de inúmeras dependências úteis para facilitar a vida das pessoas não pode despender recursos financeiros, cronicamente insuficientes, para a guarda de papel usado. A posteridade seria severa ao julgar nossas atitudes, ao verificar que não nos indignamos com semelhantes a ocupar as ruas, com a proliferação dos sem-teto, enquanto investimos o suado dinheiro do contribuinte na preservação de documentos que consubstanciam conflitos já resolvidos.
Não é desarrazoado lembrar que nós, seres humanos, tornaremos ao pó. Naturalmente ou por cremação, segundo a vontade pessoal ou de quem tiver a incumbência triste de cuidar de nossos restos mortais. Por que o papel mereceria destino mais nobre? Se o próprio homem tornará ao pó, mais do que racional reservar a processos judiciais findos a finitude natural do que não nasceu para a perenidade.
Obrigar a Justiça a conferir caráter de infinitude a tudo o que já examinou, sobre o que já fez incidir a vontade concreta da lei e deu a resposta possível, não se mostra plausível. Ao menos num contexto circunstancial em que faltam valores para custeio, sendo ausente qualquer quantia para investimento, e impõe ao Judiciário um regime de contenção e de crescentes restrições, sem o qual ela enfrentará o caos.
Clama-se por bom senso, ponderação e criatividade para que o valor preponderante mereça tutela, com justificável prejuízo do que se mostra acessório ou, em grande parte, verdadeiramente supérfluo.
PRESIDENTE DO TJSP
Fonte: www.estadao.com.br em 12.03.2014