Uma coleção particular, como define o curador Paulo Herkenhoff, é uma
espécie de “reunião de afetos ao longo de uma vida”. Outro curador, Leonel Kaz,
amigo de Jean Boghici, que viu seu apartamento com a coleção ser tomado pelo
fogo na última segunda-feira, completa a definição com a lembrança de que “Jean
era habitado pelos quadros que tinha, e os quadros eram habitados por ele”. O incêndio
do acervo, um das mais importantes de arte moderna brasileira, coincide com o
momento em que coleções particulares — ou a “reunião de afetos” de um
colecionador — começa a chegar aos olhos do grande público.
O Museu de Arte do Rio (MAR) será o primeiro com espaço fixo destinado a
exibir diversas coleções privadas. Já na inauguração, em setembro, duas
exposições mostrarão as coleções particulares de Jean Boghici, no terceiro
andar (
leia mais no texto ao lado), e de Sérgio Fadel, no segundo
andar. A ideia é que o museu siga recebendo acervos privados. A coleção de
Maria Lucia Veríssimo, por exemplo, deverá vir de São Paulo ao Rio para ser exposta
no MAR.
— Queremos manter a casa aberta a Boghici e aos colecionadores de arte —
afirma Paulo Herkenhoff, curador do museu. — O grande desafio do Rio não é
apenas ter as coleções à disposição dos museus, mas ter um processo de
institucionalização das obras. Voltei de Buenos Aires agora e me impressionou
seu Museu Nacional de Belas Artes, o mais sólido da América Latina, formado por
doações de quatro ou cinco gerações de colecionadores.
O modelo do MAR difere daqueles do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, que
abriga unicamente a coleção de Gilberto Chetaubriand, e do Museu de Arte
Contemporânea (MAC) de Niterói, que recebe a coleção de João Satammini. No MAR,
além das coleções privadas, forma-se acervo a partir de doações de
colecionadores, também na ânsia de levar ao público suas obras.
Outros exemplos têm surgido no país.
Em Ribeirão Preto, o
empresário João Figueiredo Ferraz criou um instituto que expões sua coleção de
arte contemporânea num espaço de 2.500 metros quadrados. No Rio, o casal Monica
e George Kornis, dono da maior coleção de gravuras do Brasil, comprou uma casa
para montar um instituto,
em
Jacarepaguá. Na cidade de São Paulo, o economista Oswaldo
Corrêa da Costa, temendo que seu “acervo de 40 anos ficasse estéril, distante
dos olhos do espectador”, também criou um espaço para sua coleção, onde recebe
visitas com agendamento.
O colecionador Ronaldo Cezar Coelho também planeja abrir um espaço que não
será apenas um “showroom” de suas obras, que incluem tesouros da arte
brasileira como “Vaso de Flores” (1931), de Guignard — adquirido por ele num
leilão da Christie’s em 2009 pelo preço recorde do artista, US$ 759 mil. Ele,
que compra as obras em nome de seu instituto, o São Fernando, diz que a ideia é
criar um centro de políticas públicas que abrigará arte e será uma incubadora
de projetos de educação, ecologia e patrimônio histórico.
Coelho convidou o arquiteto chinês I.M. Pei, premiado com o Pritzker, para
visitar sua fazenda, um patrimônio de 1808 em Vassouras, no interior do Rio, e
conceber o desenho do espaço, mas o projeto foi adiado: em pesquisas prévias,
conta ele, constatou-se que o espaço deveria ser nas capitais do Rio ou de São
Paulo. De luto pela tragédia com Boghici, Coelho afirma:
— O apoio ao mecenato no Brasil não existe. Estamos sozinhos nesse trabalho,
seja de repatriar obras brasileiras ou de preservá-las. Meu sonho é exibir,
tornar a coleção acessível ao público. Aliás, o maior prazer de um colecionador
é mostrar seus trabalhos.
Coelho lamenta que no caso do que chama de “repatriação de obras” seja
preciso pagar imposto de 35% sobre o valor do trabalho. Ele guarda
em Nova York um Frans Post
pintado no Brasil e adquirido por ele nos Estados Unidos porque, embora tenha
apresentado explicações à Receita Federal, não obteve abatimento no imposto.
Acervos viajam e são vistos
O Estatuto de Museus, por outro lado, estabelece, desde 2009, que coleções
de interesse público, seja em museus ou em propriedades particulares, estão
habilitadas a receber ajuda do governo.
— Pode-se até questionar a ajuda a um colecionador particular. Mas o que
está em primeiro lugar para um órgão de conservação, como o Ibram (Instituto
Brasileiro de Museus), é a preservação do bem cultural de referência nacional.
O fato de a obra ser particular ou pública é um detalhe — afirma José do
Nascimento Júnior, presidente do Ibram. — A obra pode até ter seguro. Mas
ninguém vai contratar Di Cavalcanti ou Portinari para pintar de novo. O bem
cultural se perde.
O galerista Ricardo Rêgo, dono da Lurixs, lembra que colecionadores, como
Boghici, Coelho ou ele próprio, preservam obras para que, em dado momento,
sejam de conhecimento público.
— A conservação de uma obra de arte é muito mais garantida nas mãos de um
colecionador do que numa instituição. As obras não ficam trancafiadas, mas
viajam para exposições e são vistas dentro do próprio apartamento — diz Rêgo,
referindo-se à sua coleção, numa cobertura da Avenida Atlântica, que recebe
visitas de críticos, curadores e colecionadores internacionais.
O próprio “Samba” (1925), a joia de Di Cavalcanti perdida no incêndio no
apartamento de Boghici, é um quadro muito viajado, lembra Leonel Kaz:
— Seu currículo é imenso. Recentemente, esteve na Bélgica. Foi um quadro
feliz enquanto esteve vivo.