Apesar de provimentos que facilitam a emissão de certidões, poucas unidades de saúde fornecem o serviço
O Ceará registrou, no ano passado, 128.293 nascimentos. Destes, 29% somente
em Fortaleza. Mas, na
realidade, nem todas essas crianças vão sair do hospital com a garantia de
existirem oficialmente. Isso porque, no Interior do Estado, as maternidades não
são interligadas com os Cartórios de Registro Civil e muitos desses bebês
poderão crescer e chegar à adolescência e à vida adulta sem um documento que prove
que eles vivem.
Maternidades e cartórios devem trabalhar em parceria para emitir os
registros de nascimento e também precisam estar cadastrados no sistema
eletrônico da Corregedoria Nacional, atendendo ao Provimento Nº 13 da CNJ
Fotos: Kid Júnior
Mesmo com cartórios civis nos municípios, não é todo pai e mãe que cumpre o
dever de registrar o filho, mesmo com o serviço sendo gratuito há 15 anos. E
ainda há outras facilidades oferecidas pelo Estado.
No último dia 15, a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) publicou documento
que facilita a emissão de certidões ainda nas maternidades. Pelo Provimento Nº
17, não será mais necessário o envio da digitalização de documentos no ato do
registro, bastando a declaração do profissional das unidades interligadas nas
maternidades.
O sistema de unidades de saúde interligadas a cartórios de registro civil foi
implantado por meio do Provimento Nº 13 da CNJ, em 2010. Para emitir o
documento, as maternidades devem trabalhar em parceria com cartórios e ambos
precisam estar cadastrados no sistema eletrônico da Corregedoria Nacional.
Mesmo com a publicação desses documentos, o Ceará ainda está longe de erradicar
os sub-registros através desse serviço.
De acordo com a orientadora da Célula de Proteção Básica da Secretaria de
Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado (STDS), Sandra Luna, que coordena o
Programa de Combate ao Sub-Registro no Ceará, somente duas maternidades no
Estado atendem ao provimento: a do Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e do
Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC).
No Interior do Estado, a situação é ainda mais complicada. O único município em
que a maternidade tem convênio com o cartório é Tauá, de acordo com a diretora
da Associação dos Notários e Registradores do Ceará (Anoreg-CE), Irani Macedo.
Documentação
Em Fortaleza, nessas duas unidades de saúde, o atendimento acontece de segunda
a sábado e um profissional do cartório tem sala própria no hospital, onde o
registro de nascimento é entregue em apenas dez minutos, mediante a
apresentação da identidade original dos pais, da declaração de nascido vivo
(DNV), fornecida pelo hospital e certidão de casamento, no caso de os pais
serem casados. Já no caso dos pais que vivem juntos, a mesma documentação é
exigida, com exceção da certidão de casamento, mas os dois devem assinar.
Juciane da Silva não pôde registrar a filha, Ana Lia, pois ela mesma não
tem certidão de nascimento, assim, elas não existem oficialmente
Nesta segunda situação, que representa 80% dos casos atendidos no HGCC, o
acesso à certidão de nascimento é facilitado, já que, se o casal registrar a
criança ainda no hospital, não há a necessidade de ir ao cartório.
O vendedor Jair Freitas de Araújo, por exemplo, foi um dos beneficiados com a
ação no HGCC. Se não existisse o serviço, ele teria que ir com a companheira e
o filho, Victor Enzo, até a Parangaba ou o Centro e aguardar na fila para
conseguir o documento. "Esse serviço facilita a nossa vida. Até para tirar
cópia, a gente enfrenta fila, imagine com um bebê e uma esposa operada?".
Atendimento
Nas outras maternidades da Capital, o serviço também é disponibilizado.
Entretanto, ainda não atendem ao Provimento 17, que faz a interligação entre os
cartórios e as maternidades on-line. Nas unidades mantidas pela Prefeitura,
Hospital Nossa Senhora da Conceição e Gonzaguinhas de Messejana, Barra do Ceará
e José Walter, somente nesta última, é possível solicitar o registro uma vez
por semana.
Na unidade interligada de Registro Civil do Hospital Geral Dr. César Cals,
o serviço de registro de nascimento é oferecido de segunda-feira a sábado
Nas outras, o atendimento acontece de segunda a sexta, assim como na
Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), da Universidade Federal do
Ceará. As mães que derem à luz os filhos no fim de semana têm seus atendimentos
agendados para a segunda-feira subsequente.
Mesmo assim, o número de registros é bem inferior à quantidade de partos. No
Gonzaguinha de Messejana, por exemplo, segundo o diretor-geral Eusébio
Teixeira, dos 450 partos feitos por mês, menos da metade dos bebês tem o
registro de nascimento solicitado. "Esse número é baixo porque muitas mães
moram no Interior e não querem registrar os filhos aqui. Outras não são casadas
e os companheiros não vêm ao hospital para fazer o documento", analisa.
Estatísticas
De acordo com a assistente social Sara Frota Marcelo, coordenadora da Unidade
Interligada de Registro Civil do HGCC, apesar de não existirem estatísticas de
quantas mulheres chegam sem documentos, isso não é raro de acontecer. "Nós
recebemos mulheres de todo o Estado, assim como pessoas em situação de rua e
outras que nunca tiraram a certidão de nascimento".
Andreza Lima, mesmo morando em Itapajé, optou por registrar a filha em
Fortaleza, mas a maioria dos pais prefere fazer a certidão em sua cidade natal
Entre esses casos, está o da dona de casa Juciane da Silva, de 20 anos.
Moradora do bairro Pan Americano, ela não existe oficialmente e, por isso, não
pôde registrar a pequena Ana Lia. Por ter nascido em casa, a mãe de Juciane não
a registrou. Mesmo assim, ela cursou até o 8º ano do Ensino Fundamental,
porque, quando começou a estudar, o documento não foi exigido. Há três meses,
solicitou a primeira via do registro. "Pedi na Defensoria Pública, mas
começou a greve. Não sei quando vou receber".
Na Meac, parturientes sem documentos também são comuns. A dona de casa Rafaela
Rodrigues não pôde registrar o seu filho, Thauã, ainda no hospital, porque
perdeu a sua certidão de nascimento. Para receber a segunda via, deverá
esperar, pelo menos, três meses.
Ignorância impede que se procurem os direitos
Para o professor de Direito Urbanístico da Universidade de Fortaleza
(Unifor) e doutor
em
Direito Público, Laécio Noronha, o fato de uma criança não
ter registro de nascimento fere não só o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), mas, também, a Constituição. "O registro de nascimento é a vida
documental de uma pessoa. Sem esse documento, ela não terá direito a mais nada
e não poderá tirar mais nenhum documento. Isso fere o artigo 5º da Constituição",
afirma.
Laécio Noronha ressalta como a falta de conhecimento sobre seus direitos
interfere no não acesso a esse documento. "Muitos deixam isso para lá por
não terem conhecimento de que podem tirar a primeira via gratuitamente nos
cartórios. A divulgação ainda não é suficiente. Deveria ser feito um trabalho
mais massivo sobre isso", destaca.
Prejuízos
O professor esclarece que não há punição penal para quem deixa de registrar seu
filho. "Porém, os pais que não se interessam em tirar o registro do filho
estão prejudicando-o, já que ele não poderá estudar e nem ter acesso aos
programas sociais do governo. Muitas vezes, isso se dá pela desestruturação das
famílias, com mães que têm filhos de três, quatro pais diferentes. É necessário
mais atenção dos órgãos públicos para resolver esse problema", conclui.
Projeto facilita registros em Tauá
Enquanto na Capital cearense a maioria das maternidades
ainda não consegue registrar mais do que a metade das crianças, no município de
Tauá, situado a 337 quilômetros de Fortaleza, esse índice chega a 80%.
De acordo com a diretora da Associação dos Notários e Registradores do Ceará e
proprietária do Cartório de Registro Civil daquela cidade, Irani Macêdo, desde
2001, a instituição disponibiliza um funcionário para atuar em parceria com a
maternidade do município e, assim, facilitar o acesso das mães à Certidão de
Nascimento.
O projeto, idealizado pelo cartório, funciona de segunda a segunda, em horário
comercial. "Todos os dias, um agente da cidadania, como chamamos o funcionário
destacado pelo cartório, vai até a maternidade e colhe os dados necessários. Se
a mulher já estiver de alta, visitamos a casa dela para fazer o documento para
que ninguém fique sem a certidão", explica.
A diretora da Anoreg também concorda que uma das grandes dificuldades no
combate ao sub-registro é a falta de informação dos pais. "Deveria ser
feito um trabalho de conscientização em todo o Estado do Ceará. No Interior, é
comum as pessoas andarem sem documentos até no dia a dia, imagine na hora do
parto, em que a mulher está fragilizada por conta das dores e outras
preocupações e nem sempre tem alguém para acompanhá-la", diz.
Com o projeto, o cartório tem acesso a todos os nascimentos que ocorrem na
maternidade da cidade de Tauá e, assim, faz um acompanhamento caso a caso.
"Quando o pai demora a comparecer e percebemos a falta de interesse,
levamos o livro de registro até a casa dele", relata a diretora da
Associação dos Notários e Registradores do Ceará.
Os outros 20% que preferem não registrar, em geral, são pessoas de outros
municípios, que querem que o filho seja registrado na cidade dos pais.
"Pela maternidade de Tauá ser regional, recebemos crianças de outros
locais, como Catarina, e esses pais fazem questão de registrarem os filhos nos
cartórios de lá", acrescenta a diretora.
Conscientização
Outro problema encontrado surge quando os pais não são casados. "Existem
casos em que a mãe quer que o pai dê seu sobrenome ao filho e como ele não quer
assumir, ela espera até ele mudar de ideia e, enquanto isso, a criança fica sem
registro", acrescenta.
Nestes últimos três meses, o cartório emitiu 180 primeiras vias da Certidão de
Nascimento. "Tentamos de todas as formas conscientizar as pessoas da
importância desse documento e, como já foi dito, a gente vai até a casa da
pessoa, se necessário for. Se existem casos hoje em Tauá, é questão de
irresponsabilidade dos pais", ressalta Irani Macêdo.
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